sábado, 5 de outubro de 2013

O fim

Fim do blogue.
Outro se seguirá, espero que muito melhor e com mais leitores.
Porém, antes do definitivo fecho, deixo aqui a cópia integral de "O dia em que o Comendador pensou: "E  a ponte aqui tão perto", agradecida e quiçá abusivamente rapinado ao Câmara Corporativa. Um exemplo  fiel do que tem sido a campanha estúpida, ignorante, mentirosa e absurda contra José Sócrates.
Tenham um bom proveito:



O dia em que o Comendador pensou:
“E a ponte aqui tão perto”


O Comendador Marques de Correia aventurou-se, na Revista do Expresso da passada semana, a atirar-se para fora de pé. Sob a capa de um pretenso humor, escreveu um texto que revela mais sobre o autor do que sobre a pessoa que quer atingir: José Sócrates. O anterior primeiro-ministro decidiu responder-lhe nesta edição do Expresso. Primeiro, torceu-lhe um braço até o arrancar; em seguida, fez idêntica cirurgia ao outro braço; depois, arrancou-lhe uma perna. Como na anedota do sapo, largou-o quando percebeu que, só com uma perna, o Comendador já não saltava: “Em locais apropriados poderemos discutir isto. Ou Hegel em alemão, ou Santo Agostinho em baixo latim. Ou a semiologia das letras do Quim Barreiros.” Como escreveu João Quadros, «a resposta do Henrique Monteiro está ao nível do: "Tu, pour moi, viens de charrette”. Que grande baile, ó comendador».

Eis a resposta de José Sócrates, adornada por alguns nacos da prosa da semana passada do Comendador Marques de Correia:


Caro amigo,

A ironia — pelo menos num certo entendimento que se pode ter dela — consiste na arte de fingir ignorância e dizer o contrário do que se pensa. Esta é uma arte difícil, pois aquele que a pratica precisa de ter coragem para ser mal entendido: acontecerá sempre que muitas pessoas o tomem por um ignorante (e até por um imbecil), sem perceberem que está apenas a fingir ser ignorante para comunicar o contrário do que diz a letra das suas palavras. A tua recente crónica sobre José Sócrates mostra que és mestre nesta arte!

Deixa-me começar por referir um dos pormenores mais deliciosos da tua crónica, um pormenor que aparece logo no início, e que mostra imediatamente a fina ironia do teu texto. Fazes pouco de José Sócrates por, supostamente, se ter referido numa entrevista a um livro de Kant chamado “Metafísica dos Costumes”, e explicas que o pobre homem não pode ter lido o livro “umas dez vezes” (como diz na entrevista) e, ao mesmo tempo, não saber que o seu título completo é “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. O que é mais divertido, e até genial, é fingires ignorar que, depois de escrever a “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Kant escreveu, de facto, um livro chamado “Metafísica dos Costumes” (no qual aplica os princípios que julgava ter fundamentado no primeiro livro). Que Kant escreveu, de facto, este livro, é uma informação que encontras em todo o lado: em todos os livros que leste sobre Kant (foram certamente muitos), em todas as biografias de Kant, no Google, no Yahoo, certamente na Wikipédia e, dado que o livro está traduzido em português e foi publicado pela Gulbenkian, também em livrarias e bibliotecas por todo o país. Pode o leitor da tua crónica acreditar que não saibas que o livro existe? Pode esse leitor acreditar, por um só minuto, que uma pessoa tão culta como tu, tão conhecedora da filosofia kantiana, tão familiarizada com os meandros da filosofia moral, não faça a menor ideia de que esse livro existe? Claro que não! Ao começar a ler a tua crónica, o leitor atento percebe imediatamente que penetrou no maravilhoso mundo da ironia, e fica entusiasmado com a perspetiva de ler a continuação.

E esta continuação não desilude. Pelo contrário! Logo de seguida, finges acreditar que José Sócrates cai no ridículo ao falar no “deontologismo filiado em Kant”. Com fina ironia, convidas o leitor desatento a crer que a palavra “deontologismo” não existe e que só uma pessoa muito inculta a poderia usar. Mas algum leitor atento acreditará que não sabes que a palavra existe, e que existe também, por exemplo, em inglês (deontologism), em francês (deontologisme) e em alemão (Deontologismus)? Algum leitor atento acreditará que não foste confirmar a existência ou inexistência da palavra? Ou que não sabes que ela ocorre em tudo, ou quase tudo, o que é tratado de filosofia moral contemporânea? Ou que não sabes que, nos nossos dias, a filosofia moral de Kant é universalmente considerada um “deontologismo” que difere, por exemplo, de todas as formas de “consequencialismo” e (segundo inúmeros autores) também da chamada “ética das virtudes”? Ou que não compreendes que, ao falar-se do tema da tortura em democracia, faça sentido falar do “deontologismo filiado em Kant” já que muitos dos autores contemporâneos que escrevem sobre esse tema são kantianos e filiam o seu pensamento no de Kant? É crível que, também neste caso, não tenhas feito qualquer esforço para confirmar os teus conhecimentos e que a tua cultura seja, afinal, muito inferior àquela que se encontra expressa na Wikipédia, ou até no mais reles manual de filosofia moral contemporânea? Claro que não! É evidente que não!

Mas passemos às questões mais substanciais da tua crónica, pois é aqui que, aos olhos do leitor atento, a tua ironia se torna mais sublime, mais genial e, por isso, mais hilariante. Escreves que, ao contrário do que sustenta José Sócrates, Kant “não recomenda que nunca se minta” e que, se fosse confrontado com “o velho exemplo do fugitivo escondido em nossa casa, sobre quem mentimos à Gestapo para lhe salvar o couro”, Kant diria que temos, de facto, o dever de mentir em tais circunstâncias — e isto porque (a) “há coisas, na razão prática, em que se tem de mentir (por exemplo, o valor da vida, que radica noutra ordem de grandeza)”; (b) a mentira justifica-se sempre que “haja um valor mais elevado em causa” (e há, portanto, um dever de mentir em determinadas circunstâncias); (c) “Kant deixa isso (a decisão sobre mentir ou não mentir) à autonomia de cada um”; e (d) Kant só condenaria que se mentisse à Gestapo se acreditasse que “se devia erigir em Lei Universal da Natureza entregar judeus à morte, o que é inadmissível”. Um leitor teu que saiba um pouco de Kant saberá também que qualquer uma destas temerárias afirmações justificaria um chumbo numa cadeira de liceu cuja matéria fosse a moral kantiana. Tal leitor não poderá deixar de perceber logo a enorme ironia de tudo isto, não só porque tudo o que dizes está simplesmente e completamente errado, mas também porque acrescentas, num parêntesis cuja ironia é verdadeiramente sublime, que “a mim quem me toca em Kant é como tocar-me num órgão vital”. A forma popular de te exprimires! A defesa saloia da honra de Kant, como se fosse um antepassado teu! A ignorância do facto de todos os anos e a toda a hora se escreverem, pelo mundo fora, centenas, talvez milhares de textos sobre as limitações da moral kantiana! Alguém, no seu pleno juízo, pode supor que esta ignorância saloia não é fingida? Mas sejamos pacientes, e vamos por partes, de forma a não confundirmos o leitor menos atento.

Kant pronunciou-se expressamente sobre um exemplo semelhante ao do judeu e da Gestapo: será que é moralmente condenável mentir a um assassino que persegue um amigo nosso e nos pergunta se o fugitivo está escondido em nossa casa? Kant considera este exemplo em dois textos. Um é um pequeno ensaio que finges não conhecer e cujo título deixa logo claro qual é a posição de Kant: “Sobre o pretenso direito de mentir por amor à humanidade”. O outro texto, fatalmente, é o livro que dizes não existir: a “Metafísica dos Costumes” (Segunda Parte, §9, Questões Casuísticas). Em ambos os textos, como é bem sabido, Kant não se limita a “recomendar” que nunca se minta — defende taxativamente a tese contrária àquela que lhe atribuis: dizer a verdade e não mentir é, segundo Kant, um mandamento “sagrado” e “incondicional” da razão prática, ou seja, mentir a outrem nunca é moralmente aceitável, não há nenhuma circunstância, nenhum pretexto, nenhuma conveniência, nenhuma motivação — mesmo que seja o “amor à humanidade” ou o amor a um “valor [supostamente] mais elevado” — que justifique que haja uma exceção ao dever de não mentir. Mesmo no caso do assassino que nos pergunta pelo paradeiro do nosso amigo em fuga, mentir-lhe implicaria “a rejeição e, por assim dizer, a destruição da própria dignidade do homem”, como Kant diz no livro que dizes que não existe. Seria inapropriado entrar aqui na discussão dos argumentos de Kant. Tenho a certeza de que os conheces muito bem, e de que já todo o leitor desta carta percebeu que, se não os referes, é porque tens gosto em parecer ignorante, ou, por outras palavras, porque te pareceu divertido dizer o contrário do que pensas para, disfarçadamente e sem dares muito nas vistas, elogiares José Sócrates. E acho que podemos, verdadeiramente, falar aqui em gosto, ou em gozo, até num prazer imenso. Atribuir a Kant a tese de que “há coisas, na razão prática, em que se tem de mentir” (e formulá-la desta forma macarrónica) manifesta claramente esse gosto em parecer ignorante, um gosto que não está menos presente na afirmação de que, no que respeita à decisão sobre mentir ou não mentir numa dada circunstância.

Assim é, de facto, verdade que, para Kant, “entregar judeus à morte” nunca poderia ser um dever moral, mas, ao mesmo tempo, não há dúvida de que, para Kant, adotar a regra “mentir quando está em causa evitar a morte de judeus” condicionaria o valor moral de uma ação às suas consequências e, dessa forma, implicaria a violação de um dever absoluto de não mentir. Apresso-me, no entanto, por chegar ao fim desta (já longa) carta, pois ainda falta falar de duas ou três coisas bastante irónicas e, na verdade, cómicas.

Do ponto de vista da ironia, é genial o momento em que decides dar lições de moral a José Sócrates e lhe dizes que lhe convinha “refletir muito” sobre a chamada regra de ouro: “nunca utilizar um ser como um meio, mas como um fim em si mesmo” (mais uma vez, citas de forma muito imprecisa e incorrecta, mas é óbvio que o fazes de propósito). A primeira ironia, aqui, está no seguinte: a principal razão por que Kant considera termos o dever incondicional de não mentir é que, segundo defende, ao mentirmos a alguém (isto é, a outro ser racional), usamo-lo como um meio (para os nossos próprios fins) e não como um fim em si mesmo (sejam quais forem as circunstâncias e as consequências da nossa acção). O princípio em que dizes que José Sócrates devia refletir é aquele que leva Kant a defender, no que respeita à mentira, a tese contrária àquela que lhe atribuis — o que é magistral, meu caro Comendador! Mas não só isso: a ironia não fica por aqui! Como é bem sabido (e tu certamente não ignoras!), Kant defende que nunca podemos estar realmente certos de ter agido por um puro respeito pela lei moral. Temos deveres absolutos e muitas vezes julgamos agir apenas em função do respeito que temos por eles, mas nunca podemos excluir a possibilidade de as nossas ações serem motivadas, não pelo dever, mas por inclinações de que não temos, sequer, consciência (por exemplo, pela vaidade de nos acharmos moralmente superiores aos outros). O “rigorismo” de Kant tem, provavelmente, muitas limitações, mas, entre outras coisas positivas, implica uma crítica da presunção moral, da hipocrisia, do narcisismo e do farisaísmo daqueles que julgam ter a moral no bolso. Portanto, a suprema ironia está nisto: quando usas Kant para te colocares na posição de quem trata os outros como fins em si mesmos e colocares José Sócrates na posição de quem trata os outros como meios, fazes de conta que não sabes que, segundo Kant, te estás a colocar na desprezível posição do fariseu. Ó ironia! Ó génio! E, descansa, não tens, aqui, nada a temer: depois da leitura desta carta, duvido que ainda haja algum leitor teu que não compreenda que só por ironia (e para, corajosamente, elogiares Sócrates) aceitarias parecer tão ignorante, tão burro, e tão hipócrita.

Só tenho uma pequena crítica ao teu texto. O final não é apoteótico: é demasiado óbvio, demasiado fácil. Dizeres que não basta citar um autor para o compreender? E que Sócrates não tem a “basezinha” que tu tens e que distingue quem sabe de quem pensa que sabe? Depois da genial ironia do que está para trás, este final é indigno de ti. Também é irónico — é até muito irónico! —, mas pedia-se mais. (Talvez devesses ter guardado para o fim aquela grande frase que escondeste num parêntesis: “a mim quem me toca em Kant é como tocar-me num órgão vital”).

Um grande abraço do sempre teu

Comendador Anónimo

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